A FÚRIA DO PADEIRO


Por Josias Silveira
Publicado originalmente em Auto Entusiastas e autorizado a dividir com voce, fã do Motostory, pelo próprio autor.
Nota do Editor de Motostory: “Conheci Josias Silveira no final da década de 70, quando meu pai começou a frequentar a redação de Duas Rodas e a fazer parte de algumas reportagens sobre o fora de estrada. Na edição  de outubro de 1979 eles fizeram juntos uma reportagem sobre a prática do “Trail – Os passeios Fora de Estrada” lá em Alphaville, Barueri. Com eles na reportagem estavam o Carlinhos Bittencourt, o Bitencas, e o Julio Carone, ou Tio Julio. Era a primeira vez que o pai aparecia em uma reportagem de capa, impulsionada pela chegada da Yamaha TT 125 e da Honda FS 125, esta ultima criação do Eduardo Machado, o Dudu. Mas, estas são outras histórias. O fato é que o Motostory ganhou de presente um de meus primeiros mestres, o jornalista Josias Silveira, e suas deliciosas criações. Aproveitemos.
“Olhei pela janela e vi algo que viralizou, pelo menos em São Paulo. Um padeiro ambulante, que leva um enorme cesto de pães em uma moto. A padaria delivery também voltou a se popularizar com bicicletas, depois de décadas de desaparecimento.
Minha cabeça voltou no tempo, ainda mais que acabamos de passar o Dia das Crianças, e lembrei-me da minha primeira vez. Aliás, das minhas primeiras vezes. Fica calmo que o padeiro aparece lá pelo meio de mais esta história do Tio.
Depois de décadas de desaparecimento, voltou o padeiro delivery em muitas cidades – Fotos ilustrativas da Pinterest.com, por Josias Silveira
Eu era garoto, tinha uns 11 anos e morava em Curitiba (PR). Andava de bicicleta (e Curitiba tem muita pirambeira, morros para tudo quanto é lado) morrendo de inveja de quem tinha moto, Lambretta ou Vespa, já que as avós dos scooters atuais estavam na moda. Aliás Lambretta até hoje é o termo genérico para scooter, da mesma forma que Gillette é sinônimo de lâmina de barbear. Na subida, pedalando e suando como um cretino, sempre passava alguém com um motorzinho dois-tempos todo sorridente, jogando fumaça na minha cara. Eu sonhava em também ter um acelerador no punho direito.
Curitiba no final dos anos 1950: muitas Lambretta e Vespa nas ruas paranaenses – Fotos ilustrativas da Pinterest.com, por Josias Silveira
Um amigo tinha um irmão, um “velho” que tinha mais de 20 anos, já estudava medicina e tinha uma “noiva” bonitinha e bem pentelha. Mas, ele era nosso ídolo, pois andava de Lambretta (uma LD 125, acho que de 1957) com side-car. Claro que a “penta” da noiva não queria saber da garupa e obrigou o coitado a conseguir um side-car.
O cara era bem legal e ensinou eu e meu amigo a dirigir aquele trambolho. Ele era bem didático: explicava uma vez (e aquele manete esquerdo com embreagem e câmbio não é muito fácil de dominar) e a gente saía. Claro, com ele na garupa, sendo bem gentil e didático. Qualquer erro (deixar morrer na arrancada ou travar a roda traseira na frenagem e lá vinha um tapa na orelha. Método muito eficiente: o aprendizado foi relâmpago.
Claro que o prazer era limitado: o dono na garupa e aquela trolha do side-car eram mais que complicados de serem empurrados pelos modestos 5 cavalinhos do motor dois-tempos de 150 cm³.
Lambretta LD 150 com side-car: rara e bonita, mas complicada de pilotar – Fotos ilustrativas da Pinterest.com, por Josias Silveira

Logo descobri que as curvas para a esquerda eram muito mais emocionantes, pois dava para deitar a Lambrettinha e o side-car saia do chão, tirando a roda do asfalto. A manobra ousada sempre valia o tapão que eu levava na orelha, logo depois da curva.
Já virar para a direita era um lixo. O side atrapalhava e a curva era “quadrada”, com o scooter tentando inclinar e sendo travado pela trolha lateral.
Ou seja, desde a infância descobri que três pontos definem um plano e três rodas definem o pior tipo de veículo que existe. Qualquer encrenca com três rodas — incluindo todos os tipos de triciclo — reúne todos os defeitos de carros e motos em um único veiculo.
Mesmo com os curtos passeios dominicais de Lambretta emprestada, meu sonho aos 11 anos de idade era sair sozinho, pilotar sem side-car, sem tapa na orelha, equilibrando sobre duas rodas e deitando nas curvas.
Aí lembrei do padeiro. Naquela época (final do anos 1950), as casas tinham uma “caixa de correio” ampliada: tinha lugar para a correspondência e também outra grande caixas para pão e leite. Toda manhã, lá estava o pão e uma garrafa de vidro grosso com leite.
Às 6h da manhã, lá vinha o padeiro com sua Lambretta Standard, a 150 D (foto de abertura) um modelo “pelado” mais usado para o trabalho. Era meio desprezado naqueles tempos e hoje é o modelo mais valorizado para coleção. No caso do “meu” padeiro, havia uma enorme caixa de alumínio no lugar do banco e estepe traseiro, que se estendia pelas laterais.
Comecei a estudar a rotina do padeiro. Levantava antes das 6h só para observar seu MO (Modus Operandi). Ele chegava, encostava a Lambretta na calçada, deixava o motorzinho em marcha-lenta, pegava um monte de pães e andava uns 40/50 metros para trás, entregando em cada casa.
Bolei o plano perfeito.
Fiquei escondido atrás do portão, esperei o padeiro ir até a casa mais distante com as mão cheias e “roubei” a Lambrettinha…
Ela já estava funcionando, sentei rapidinho, engatei primeira e acelerei. Só escutei um berro de “Piá filho da pu…” (em curitibanês, piá é sinônimo de moleque). O padeiro saiu correndo atrás, mas já era tarde… Em êxtase, dei a melhor volta no quarteirão da minha vida, deitando a Lambrettinha nas curvas até a caixa de pães raspar no chão. Nos buracos, escutava os pães voando dentro da caixa de alumínio.
Deixei a Lambretta uns 50 metros antes do local que ela estava estacionada, bem a tempo de ver o padeiro virar a esquina de volta, com a língua de fora, depois de correr inutilmente atrás de seu “ganha-pão roubado” (desculpem o trocadalho).
Consegui roubar a Lambretta mais uma vez, depois de uma semana, mas o padeiro ficou esperto. Passou a desligar o motor quando parava perto de casa. A chave servia para trancar o guidão e havia um botão só para desligar. Para funcionar o motorzinho, era só pisar no pedal. E ele não travava o guidão.
Tentei o terceiro roubo. Esperei ele se distanciar, corri para a Lambretta e pisei no pedal. “Desgraçado, deixou engatada”. Enquanto eu achava o ponto morto e pisava desesperado no pedal, o padeiro veio correndo…
Corri mais, levei um pão certeiro na cabeça e escutei: “Piá sem-vergonha, vou contar pra sua mãe”. Contou.
Voltei da escola com cara confiante e, na hora do almoço, minha mãe abre o assunto:
“Você acredita que o padeiro veio reclamar de você. Disse que você anda roubando a Lambretta dele para dar voltas no quarteirão”.
Não neguei. Minha cara de pau não chegava a tanto, senão eu teria me tornado um político. Apenas perguntei: “a senhora acha que eu faria uma coisa dessas?”
Minha santa mãe me olhou , olhou nos meus olhos e sentenciou:
“Eu sempre achei que esse padeiro é meio maluquinho mesmo… Como ele foi inventar uma coisa dessas. Você nem sabe dirigir uma Lambretta”.
Que Deus a tenha e abençoe tanto a ela como ao coitado do padeiro, que também já deve estar em outro plano espiritual.
Para matar a saudade, nada como a minha Vespa Super dos anos 1970 – Foto Josias Silveira
Nota do Tio Escriba: Esta é uma história real, um pequeno retrato de tempos mais amenos e felizes. A gente levava uns cascudos, sabia que merecia… e se divertia muito. Exatamente por isso, continua tendo um prazer enorme em rodar com scooters ou com minha velha Vespa. Fotos ilustrativas da Pinterest.com, exceto a da minha Vespa Super dos anos 1970 que era 150, mas virou 200.





https://motostory.com.br/pt/a-furia-do-padeiro/?sfw=pass1584972656

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