Uma Viagem de Motocicleta ATRAVÉS DOS ANDES
Nota do editor de Motostory: Esta reportagem foi originalmente publicada na revista Motociclismo número 5, de Novembro/Dezembro de 1949. Este primeiro exemplar nos foi cordialmente cedido por Décio Kerr Oliveira, filho de Ciro P. Oliveira, um dos “Bandeirantes do século XX” que, junto com outros três amigos, tentou alcançar o oceano pacífico à bordo de sua Triumph Boneville 500 de 1947. (*Obs: Irineu Paulini nos mostrou, apos a publicação deste artigo, que a Boneville como modelo só foi criada em 1959. Obrigado pelo olhar atento!). Esta é a primeira parte de uma série de reportagens que serão reproduzidas aqui no Motostory. O texto foi transcrito na íntegra para facilitar a leitura, com pouquíssimas correções. A reportagem com as lembranças do filho Décio das aventuras de Ciro está na edição número 236 / Agosto de 2017 da atual Revista Motociclismo, revista esta que nada tem a ver com a antiga publicação.
“1ª de uma série de artigos
Há 3 anos mais ou menos, Ayres Nogueira e o Dr. Cyro P. Oliveira tiveram a ideia de realizar uma viagem de motocicleta através de alguns países o continente, mas, por falta de outros companheiros, protelaram o empreendimento.
Da composição e Orientação:
Em 1949 conseguiram-se mais dois companheiros e assim foi composta uma caravana de 4 motociclistas, que passou a denominar-se “CARAVANA DA BOA VIZINHANÇA” , e constituída dos seguintes elementos:
- Ayres Nogueira, despachante oficial
- Bernardo Ciambelli (Médico)
- Ciro P. Oliveira (Médico)
- José Lamoglia Neto (Negociante)
Composta e organizada, a referida “caravana”, passamos desde logo a cuidar de sua orientação em seus mínimos detalhes, com atenção muito especial com as divergências que poderiam surgir no decorrer do “reide”, divergências que poderiam prejudicar o encanto ou mesmo a realização do mesmo. Deste modo, ficou entendido que todos os assuntos, mesmo os de ordem pessoal, seriam decididos por “votação” portanto, democraticamente: deste modo, os problemas surgidos durante o transcurso da viagem pertenciam a todos e por todos deveriam ser resolvidos, e quando, por circunstâncias especiais, houvesse “empate” na votação, o assunto seria resolvido por sorte (com o uso de uma moeda).
A orientação a seguir na estrada ficou decidida logo, por votação, da seguinte maneira: O comando seria assumido, por ordem alfabética, visto como a formação era de “fila indiana” e a distância entre um e outro de aproximadamente 50 metros, sendo terminantemente proibido a qualquer dos ocupantes passar na frente de outro com a consequente mudança de formação, o que poderia criar um ambiente de disputa, nada conveniente a uma excursão tão longa, cujo objetivo era de simples passeio e turismo. Dêste modo, a formação obedeceu ao seguinte critério para a primeira etapa – São Paulo – Curitiba 1º – Ayres Nogueira – 2º – Bernardo Ciambelli – 3º – Ciro P. Oliveira – 4º – José L. Neto.
A VIAGEM
(1ª Etapa – São Paulo – Curitiba)
Saída Oficial: Palácio dos Campos Elísios, ponto de organização: Ponte Nova de Pinheiros (fim da Avenida Rebouças).
Dia e hora da saída: 23 de outubro de 1949, às 6,45 da manhã.
A manhã estava bastante nebulosa, e assim, após meia hora de marcha já estávamos um pouco molhados, embora protegidos por capa de material plástico. Às 9hs mais ou menos, tivemos um belíssimo sol, e assim foi aumentada a velocidade que oscilava entre 60 e 100 quilômetros horários. O nosso primeiro ponto de parada para um reforçado café, foi Piedade. Até ai nada de novo, a não serem pequenas derrapagens sem maiores consequências. A estrada é bastante acidentada e possui curvas perigosas, mas de Piedade para diante, até as proximidades da Serra, há trechos que permitem velocidades superiores a 100 K.H.
A primeira “aterrisagem” coube ao 3º colocado da fila, Ciro P. Oliveira, que “espetacularmente” derrapou numa curva da Serra do Paraná e andou seguramente 10 metros em marcha-ré. Verificamos logo que foi um acidente extremamente feliz, pois ele e a motocicleta estiveram à distância de um palmo de preciptar-se por uma ribanceira de 30 metros de profundidade. O Dr. Ciro revelou-se daí por diante “O Rei do Tombo” e das aterrisagens felizes, como verificaremos no decorrer desta narrativa.
O segundo acidente verificou-se com o segundo colocado na ordem, o Dr. Bernardo Ciambelli, o qual, a uma velocidade de 100 quilômetros horários e a 20 de Curitiba, teve o interior da roda traseira inteiramente rebentado, o que levou a maquina a uma brecada incontinenti, provocando enorme derrapagem, felizmente sem aterrisagem do piloto. Por grande sorte surgiu por ali um caminhão da Prefeitura de Curitiba, o qual transportou a maquina para esta capital. Este acidente ocorreu às 3,30 horas da tarde, o que nos impediu de chegarmos a Curitiba antes das quatro do mesmo dia da partida.
Nossa chegada verificou-se às 6 da tarde desse dia, e confessamos, estávamos cansados, os músculos doíam pavorosamente, e tínhamos pela frente um problema a ser resolvido (a roda quebrada) antes de iniciar a próxima etapa – Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina. Contudo, o nosso ânimo de bandeirismo estava intacto.
Não nos assustava a indisposição física, pois sabíamos que era passageira.
Tivemos que esperar, em Curitiba, três longos dias para receber a tão encantada roda, que, assim mesmo, não era elástica.
Os nossos problemas estavam sendo discutidos em reuniões que democraticamente realizávamos após as refeições em nosso hotel, problema esse que envolvia sobretudo assuntos de ordem sentimental, ferindo fundo nosso temperamento latino.
Contudo, a viagem deveria prosseguir com esse problema debatido e resolvido, muito embora solução que deveria ser dada contrariasse os nossos sentimentos e causasse descontentamento ou mesmo repulsa, por parte dos entes queridos que aqui ficaram.
Finalmente, após movimentadas e agitadíssimas reuniões, o assunto foi aprovado por 3 votos contra um, ficando assim evidenciada a firme determinação de todos para atingir o objetivo marcado, mesmo que, para tanto, fosse necessário enfrentar a própria morte…
O referido assunto entrou em discussão exatamente por causa dos acidentes ocorridos durante a primeira etapa: nosso espírito de aventura nos empolgava, sentíamos em todo nosso ser o calor vivificante que trazia a lembrança dos velhos bandeirantes paulistas, lembrança que nos vinha a todo instante, como também o encanto da terra que pisávamos: O Estado do Paraná.
Na continuação faremos um relato completo das movimentadas reuniões que puseram em risco a camaradagem que reinava entre os Bandeirantes da Nova Geração.”
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