Viagem a Minas Gerais: Estrada Real de Ouro Preto a Diamantina
“Quaresmeira se encheu de flores,
Já calcei o velho tênis,
Não tirei nosso bóttom da mochila”
(da música “Caminho Pro Interior” de Otávio Toledo, interpretada por Bruna Caram – vídeo no final do relato)
O coração de Minas soa forte em Ouro Preto e pulsa pela Estrada Real. Percorremos o trecho de Ouro Preto à Diamantina com um desvio para o Museu Inhotim em Brumadinho.
A estrada de Brasília para Belo Horizonte estava ótima neste Maio de 2010. Todo o dinheiro dos governos FHC e do primeiro governo Lula pagava os juros da dívida pública e engordava os lucros do setor financeiro, sem contar a comissão do PMDB (isto é do PR). Hoje os juros são ainda maiores e o DNIT ainda pertence ao PMDB (ou ao PR? ou ao PT?), mas, graças à China, sobra um troco para manter algumas estradas em boas condições. Dá para viajar de carro como nos velhos tempos, apesar de ainda haver muita rodovia em petição de miséria.
Ficamos uns dias em um resort perto de Sete Lagoas. Bom ter os filhos criados e meter o pé na estrada fora de temporada. Neste e em outros hotéis, pousadas e restaurantes, toda a estrutura estava ao nosso dispor, sem esquecer os funcionários cada vez mais profissionais e educados. As faculdades de turismo estão cumprindo o seu papel. Minas resolveu levar o turismo a sério. O estado está todo dividido em circuitos: das águas, Guimarães Rosa, Tropeiros de Minas, Estrada Real, etc, o que dá muita graça.
Antigamente, viajar fora de São Paulo e das imediações do Rio era um problema sério. Mantém-se a superioridade das estradas estaduais paulistas, mas boa hospedagem e comida estão em todo canto. Era mais sábio ir ao banheiro no mato, pois as privadas, latrinas, sentinas, penicos públicos e instalações similares competiam pelo registro do recorde de imundice no livro do Guiness. Em algumas, a vítima era obrigada a ficar agachada em equilíbrio instável, com os pés precariamente situados em escorregadias marcas de pés de louça. Uma queda poderia ser fatal experiência a ser jamais esquecida, trauma para muitos anos no divã do analista.
E o que falar das comidas apresentadas em caixas de vidro com moscas aprisionadas? Ovos azuis e lingüiças pretejadas por animados insetos em movimento. E os pastéis? Meu Deus! Retângulos enormes de massa borrachuda expostos despudoradamente por muitos dias na vitrine gordurosa. A recheá-los quase imperceptível bolinha de carne com sorte encontrada em uma das pontas. Talvez um décimo de azeitona. Muita Coca-Cola para a vítima se lavar por dentro.
Ainda são encontrados alguns estabelecimentos de beira de estrada que, por lealdade às raízes culturais, lutam para manter o padrão acima descrito, mas seu número, hoje, é felizmente pequeno em Minas Gerais. Goiás, campeão neste quesito, também tem melhorado muito.
Próximo a Sete Lagoas visitamos a caverna Rei do Mato. É um espetáculo belíssimo, especialmente o último dos quatro salões abertos à visitação. Colunas naturais que me lembraram a Catedral da Sagrada Família em Barcelona, mas que fazem parecer tosca a imaginação do mestre Gaudí. A descida a cavernas, normalmente uma arriscada provação, é um passeio por seguras rampas e escadas de metal na Rei do Mato. Competente guia funcionária da prefeitura de Sete Lagoas torna o passeio mais interessante. Essa caverna, embora menor, é mais bonita que a famosa Gruta de Maquiné. Está bem protegida e cuidada pelos governos estadual e municipal em parceria. Minas está cuidando com carinho de seu patrimônio natural.
As cavernas são tratadas na legislação brasileira como “cavidades naturais”. Tal expressão dá margem a interpretações de pessoas maldosas referentes às cavidades naturais de tipo diverso, muito populares. Algumas dessas são intensamente freqüentadas por grande e diversificado público. Outras melhor estariam se tombadas a integrar o patrimônio da nação. Muitas foram maltratadas por anos de visitas indiscriminadas, sem qualquer manutenção. A caverna Rei do Mato é muito menos conhecida do que muitas dessas cavidades que tanto alegram nossa exuberante natureza tropical!
O Museu de Artes e Ofícios de BH é ótimo. Imediatas as analogias com o museu homônimo de Paris, mas, é daí? Excelente trabalho de arquitetura e preservação da memória mineira e brasileira. Para minha geração, muitos dos instrumentos de trabalho expostos não são assim tão distantes no tempo. Para minha mulher, mineira nascida em uma vilazinha (hoje centro urbano bem crescidinho), a réplica da vendinha do interior era idêntica à de sua infância. Não deixem de levar as crianças para visitá-lo.
A feira de artesanato do Domingo na Avenida Afonso Pena congrega uma multidão colorida por humildes roupas domingueiras, que ali encontra sapatos, objetos de decoração vestuário e uma infinidade de outras coisas por um preço incrivelmente baixo. São bordadeiras, sapateiros, costureiras, fabriquetas domésticas de móveis e de milhares de outras coisas. Lá tem tudo o que se pode fazer em casa e vender barato. Na calçada do lado do Parque da Cidade ficam os pintores, dentre os quais um único “naïf”. Muitas telas padronizadas a retratar as velhas cidades coloniais mineiras.
A feira não é para colecionadores sofisticados de artesanato popular, embora estejam a venda peças mais elaboradas e caras, nem todas boas, no “Palácio das Artes”. A feira é o local de encontro de consumidores de baixa renda com pequenos produtores de fundo de quintal. É expressão da pujante economia doméstica mineira, artesanal e semi-artesanal, em competição viável com a produção industrial. Hoje, Minas tem a maior percentagem de pequenos empreendedores do Brasil, com efeitos positivos no volume da produção, na distribuição da renda e no nível de emprego.
Muita gente que invade o centro da cidade no Domingo, para comprar na feira, visita o Parque da Cidade. Há algumas décadas, o centro de BH era elegante local de lazer da classe média e de visitantes do interior bem vestidos e compostos. Não deixa de ser bom, apesar dos copos plásticos e das latas de cerveja espalhados pela grama, que uma grande massa popular se aproprie desse espaço público no fim de semana. O centro da cidade foi democratizado. Antigamente, o povão não tinha nem como chegar visitá-lo. Alias o povão de Minas não vivia nas cidades, mas morava nas fazendas.
O complexo da Pampulha está em boa forma, freqüentado por outra multidão no fim de Semana. Foi uma alegria ver a Igrejinha de São Francisco, de Oscar Niemeyer, tão pintadinha e bem conservada, com guia, lojinha de artesanato, etc. Juscelino Kubitschek que era muito místico e devoto de São Francisco de Assis entristeceu-se, pois a Igreja Católica se recusou a consagrar o templo que construira. A arte moderna era considerada um desrespeito à religião. O cúmulo do insulto era o cãozinho pintado por Portinari em maravilhoso mural. Mais de uma década depois, na missa em que a igreja foi consagrada, contava JK que um cachorrinho vira-lata entrou na igreja e sentou-se ao seu lado. Lembrava que um cãozinho humilde representava São Francisco no imaginário popular italiano. Quem não se emociona ao lembrar essa e outras histórias de Juscelino, mistura de ingenuidade e grandeza?
Belo Horizonte está povoada de evocações afetivas para minha mineira mulher e para mim. Por isto revê-la foi decepcionante. Já foi das cidades mais charmosas do Brasil, com suas casas antigas e ruas sombreadas por árvores frondosas. Tinha muita personalidade. Há ainda restos esparsos da velha cidade bonita e elegante, mas, hoje, BH não escapa da decadência urbana que assola o centro das cidades brasileiras. Uma São Paulo mais pobre. Nada de Avenida Paulista. Está mais para os arredores do Viaduto do Chá ou talvez, para Guarulhos. Belo Horizonte é a capital nacional dos botecos. Consolam-se os moradores a beber cachaça, a comer pele de porco e a lamentar a beleza perdida de sua cidade.
Não deixem de ir ao Inhotim, museu gigante que reúne obras de alguns dos mais expressivos nomes da arte contemporânea situado em Brumadinho. A combinação do paisagismo iniciado por Burle Max e da enorme estrutura para abrigar as diversas obras torna-o o maior e, talvez, o mais importante museu do gênero no mundo inteiro. Não dá para descrever Inhotim em poucas linhas. O melhor mesmo é visitar o site http://www.inhotim.org.br, para se ter uma pálida idéia da instituição. Visitar o local é a única maneira de entender sua importância.
Cerca de cem quilômetros do Inhotim está Ouro Preto. A arquitetura e escultura coloniais mineiras são marcos fundamentais do imaginário que nos fez nação. O contraste com Inhotim é, portanto, interessante: um super museu de arte contemporânea faz contraponto a um deslumbrante acervo de arte colonial.
Ouro Preto: foto George Zarur
Ouro Preto está radiosa! Há alguns anos caía aos pedaços. Trânsito perigoso, caminhões a atacar chafarizes seculares, casarões com a pintura escurecida de óleo diesel ou a cair, fios e postes a esconder a beleza. Hoje a cidade está pintada e limpa. Grande parte da horrível fiação enterrada e os postes removidos. O trânsito está ordenado e, na medida do possível, seguro para pedestres. Ouro Preto é programa para, no mínimo três dias. Uma boa leitura antes da visita é o “Romanceiro da Inconfidência” de Cecília Meireles.
Ouro Preto: foto George Zarur
Ouro Preto: Foto George Zarur
Ouro Preto:Foto George Zarur
De Ouro Preto seguimos a Estrada Real, no sentido de Diamantina. Mariana é uma extensão de Ouro Preto, bem perto. Richard Burton, o viajante e aventureiro inglês do século XIX chamou-a de “cidade eclesiástica”. Em Mariana, um bom programa é levar as crianças para visitar a Mina da Passagem. Continuamos para Catas Altas com sua igreja recomendada e com um centro ao redor da igreja que é uma graça. Infelizmente, como chegamos próximo à hora do almoço, o templo (que tem um Cristo do Aleijadinho) foi rapidamente fechado antes que pudéssemos visitá-lo. Perguntamos a uma beata que saia da Igreja se ela não seria reaberta (a Igreja, bem entendido) e fomos informados que não. Saí com a impressão de que havia batido aquela preguiça do sol do meio-dia, pois ninguém é de ferro. De qualquer maneira, o centro de Catas Altas, é bonito e bem preservado. O cenário da Serra do Espinhaço é impressionante.
Ouro Preto: Foto George Zarur
De Catas Altas a Sta Barbara, onde pernoitamos. É uma cidade maior cuja grande atração é a matriz de Santo Antônio. Lindíssima e restaurada. Um guia funcionário da prefeitura da cidade explica com clareza e competência, sem chatear, sobre a igreja e o belíssimo teto de Manoel da Costa Athayde. Foi bom saber que a restauração da igreja foi realizada após a mobilização do povo. Os empresários e o governo local contribuíram financeiramente.
Igreja de São Francisco: Ouro Preto. Foto George Zarur
Ouro Preto: Foto George Zarur
Saindo de Santa Bárbara continuamos para o Santuário do Caraça, com o seu famoso colégio restaurado após um incêndio. Lembro-me, criança no Rio de Janeiro, minha tia mineira me ameaçando: “ou você se comporta ou vai para o Caraça”. O Caraça era para mim uma penitenciária para meninos onde os padres os torturavam sem piedade. Hoje, a instituição é muito mais amigável e pode ser visitada sem medo. A temperatura esfria devido à altitude e à preservação do enorme parque que rodeia o antigo colégio. A natureza lá está como sempre esteve.
O colégio é muito bonito e os quartos mais antigos valem pelo sabor do tempo. Porém, a alimentação é de uma simplicidade franciscana. Um dos programas característicos do Caraça são os passeios pelas muitas trilhas lá existentes. Seguimos uma bem leve que nos levou a ver a grande cara, a “caraça” que deu o nome à Serra e ao local. Outra mais pesada nos fez subir até uma capelinha lá no Alto. Na descida íngreme da entrada do Colégio existe um brasão imperial brasileiro riscado com cuidado no chão de pedra. Fui informado que as armas do Império marcam o local em que D. Pedro II escorregou, quando em visita ao local em 1891. Piedosos clérigos registraram com devoção o local exato em que as nádegas imperiais aterrissaram.
Alvorecer no Caraça – Foto George Zarur
A grande atração do Caraça é o seu lobo Guará. Fascinante! Crianças de oito anos de uma escola de BH esperavam ansiosas pelo bicho, que veio não muito tarde. Deu um show sem se assustar com os flashes das câmeras das crianças que as manejavam com desenvoltura. Lobos Guará são, em geral, esquálidos sobre suas pernas compridas. Uma espécie de Don Quixote do mundo animal. Talvez devido ao trato que recebe para visitar o colégio, aquele deve ser é o maior lobo Guará do mundo e, também, o de pelo mais brilhante.
Lobo do Caraça: Foto George Zarur
O plano inicial era seguir a variante mais trilheira, por estrada de terra, em nosso veículo 4X4, que nos levaria a Ipoema e Itambé do Mato Dentro antes de chegarmos a Morro do Pilar. Porém, minha esposa queria rever Lagoa Santa, cidade onde seus pais haviam casado. O novo percurso foi subir a Serra do Cipó e pegar a Estrada Real mais à frente. Era uma variante do secular caminho, pois passaríamos por Caeté e Sabará. Não foi uma decisão sábia, pois enfrentamos uns cinqüenta quilômetros da perigosíssima rodovia BH-Vitória e ainda voltamos a passar pela capital mineira. No domingo, o trânsito estava engarrafado em Lagoa Santa. Dissipou-se a imagem romântica da antiga Lagoa Santa envolta em bruma para dar lugar a um laguinho sujo cercado de veículos nervosos. Escapamos com sentimento de alívio.
Na Serra do Cipó, as cachoeiras mais bonitas estão a uma distância alcançável apenas por jovens atletas. Subir a estrada na Serra na direção de Conceição do Mato Dentro torna as coisas mais interessantes. Vistas fantásticas. Já no Alto vimos uma setinha apontando para uma estrada de terra indicando “Morro do Pilar”. Fizemos uma descida cênica espetacular até essa localidade, onde retomamos a trilha da Estrada Real. Na cidadezinha fomos inquiridos por um senhor de idade:
– “se mal lhe pergunte….o que o traz a estas paragens?”
– “aventura, achamos bonito e resolvemos descer a serra.”
– “há, há, há!. mais vale andar à toa que ficar à toa!”
Daí a Conceição de Mato Dentro seguimos por estrada de terra, porém Estrada Real. Em alguns trechos desconfiávamos estar perdidos, pois o percurso não estava mapeado pelo GPS. No entanto éramos tranqüilizados por marcos freqüentes que sinalizavam a Estrada Real. Foram umas boas horas de gostoso percurso aventureiro.
Conceição do Mato Dentro tem trechos bem conservados e a vista dos altos é de cartão postal. Nas imediações está a cachoeira do Tabuleiro vista de um mirante longínquo. Chegar perto é extenuante e exige guias.
Conceição do Mato Dentro: Foto George Zarur
Seguindo a trilha da Estrada Real continuamos pelo Serro, Milho Verde e São Gonçalo do Rio das Pedras até Diamantina.
O Serro é das cidades históricas mais bonitas. Autêntica e linda, em seu estilo próprio, diferente de Ouro Preto, Diamantina ou Tiradentes. Deveria integrar o Patrimônio Cultural da Humanidade apesar da opinião de uma jovem vaidosa, que se queixava do calçamento de pedra irregular, obstáculo ao uso de sapatos de salto alto. O povo do Serro gosta de conversar. Uma simpática senhora ao saber que minha esposa nascera em uma cidade próxima à Araxá, informou morrendo de pena, para consolá-la, que, também ela “era quase paulista”. A gente que habita o coração de Minas das cidades coloniais e das montanhas mais verdes e altas, considera-se diferente dos demais mineiros e do restante da humanidade. Com certa razão!
O Serro: foto George Zarur
O Serro está muito mais agradável do que Diamantina. Enquanto Ouro Preto se recuperou e brilha com todas suas casas, morros e igrejas, Diamantina está a desmerecer (JK que nos perdoe) o título de Patrimônio da humanidade.
Diamantina: Foto George Zarur. Rua Direita. tentei fotografar minizando a confusão visual
É lamentável. O comércio expõe plástico barato como se os comerciantes tivessem vergonha das fachadas coloniais. No intuito de ocultá-las ainda insistem em gigantescos letreiros em suas lojas. Nas ruas inclinadas mesas e cadeiras também de plástico invadem o espaço público e impedem o deslocamento tranqüilo de pedestres e veículos. Tirei pouquíssimas fotos de Diamantina, pois era quase impossível encontrar um ângulo ou uma cena que não expusesse motocicletas e automóveis, letreiros comerciais e banheiras de bebê de plástico vermelho a esconder o casario colonial, ainda por cima, encimado por uma confusão de fios elétricos e de antenas de TV. Não é preciso visitar Diamantina para ver essas coisas! A poluição visual é uma praga!
Diamantina: Foto George Zarur
Caminhar nas ruas de Diamantina, outrora tão gostoso, hoje é arriscado. Motoboys com cara sádica atacam transeuntes indefesos, de preferência turistas. Não há a menor organização no trânsito, pois mão e contramão são conceitos abstratos. Por isto, mesmo nos menores percursos dá-se a ré várias vezes, pois sempre vem alguém no sentido contrário, em desobediência às placas de trânsito, caso existam. Caminhões impedem a circulação normal dos carros menores que ficam parados por muito tempo, esperando que descarreguem.
Diamantina:foto George Zarur. dois caminhões coloridos para compor a cena.
Diamantina: foto George Zarur. Duas motocicletas coloridas para compor a cena.
Diamantina está precisando de um “choque de ordem”, de mais prefeitura, de mais polícia e da mobilização da comunidade, como parece ter acontecido em Ouro Preto, para que seja preservada em toda plenitude de sua beleza. Um bom programa continua a ser a aquisição de artesanato na Loja “Relíquias do Vale” (do Jequitinhonha).
Diamantina: por alguns raros segundos, a cena sem obstrução de veículos ou ameaça de atropelamento ao fotógrafo. foto: George Zarur
No caminho de volta para casa já batia a saudade do “caminho pro interior” da nossa adorada Minas Gerais!
http://www.georgezarur.com.br/2017/10/09/viagem-a-minas-gerais-estrada-real-de-ouro-preto-a-diamantina/
Comentários
Postar um comentário