Entrevista Eunice Rides a Royal – Desafiar-se para viver em duas rodas


A doença obrigou-a a alterar por completo a sua vida. As motos voltaram então a ser o ponto central da vida que agora leva, e as viagens uma forma de meditação e de desafio às suas capacidades. A Eunice está numa Volta à Península Ibérica aos comandos de uma Royal Enfield Interceptor 650. Aqui fica a nossa entrevista à Eunice.

Provavelmente já ouviu falar na Eunice. Não? Então e se lhe dissermos que estamos a falar da Eunice Rides a Royal? Se calhar assim já a reconhece! 
Depois de se tornar na primeira mulher a viajar sozinha de moto e completar uma volta a Portugal, a Eunice está de regresso à estrada para mais uma viagem, desta feita uma Volta à Península Ibérica. A Himalayan ficou em casa, e em vez da trail, a Eunice optou por levar com ela uma das novas Royal Enfield Interceptor 650, que entretanto já tem um nome a condizer com a viagem: Iberia.
O Andar de Moto sentou-se à mesa com a Eunice, por alguns momentos, pois a sua agenda está recheada de coisas para fazer, e falámos um pouco de tudo o que ela passou e está a passar, incluíndo a doença que a levou a modificar por completo a sua vida e a forma como as motos a ajudam a recuperar.
Leia em baixo a nossa entrevista exclusiva à Eunice. Ou melhor, à Eunice Rides a Royal!
Andar de Moto (AdM) – Para começarmos, apresenta-te aos nossos leitores.
Eunice - O meu nome é Eunice, mas identifico-me como Eunice Rides a Royal. Tenho 40 anos e sou do Porto. Nasci no Porto, cresci no Porto, mas estive a viver fora (de Portugal). Mais ou menos há cerca de três anos e meio, quase quatro anos, voltei a casa.
AdM - Como e onde é que nasceu a tua paixão pelas motos?
Eunice - Nasceu comigo (risos)! O meu pai é da Royal Enfield Porto. O meu pai, basicamente, é o culpado de tudo. Foi ele que me passou estes genes. Embora a ligação à Royal Enfield seja recente, ele sempre trabalhou com motos, e é giro porque mesmo quando eu era mais nova sempre gostei das Royal Enfield. Para mim, era aquela marca das viagens. Mas o meu pai vendia de tudo: motos, bicicletas, peças. Portanto eu passava muitas horas nas lojas e brincava com motos, sabia o nome das peças, etc. Portanto para mim as motos são uma coisa muito natural, que sempre fizeram parte da minha vida. Era o negócio de familia.
AdM - E sempre andaste de moto? Ou gostavas de motos mas não sentias a atração por andar de moto?
Eunice - Comecei a andar de moto aos 12 anos. Sou filha única, e por isso sou a menina do papá. Para onde ele fosse eu ia com ele. E houve um sábado que eu achei estranho ele e a minha mãe irem sair e dizerem-me que eu não podia ir com eles, que tinha de ficar em casa. Entretanto o meu pai chegou a casa, eu fui espreitar e ele trazia na carrinha uma moto tipo uma Mobilette mas em que nem era preciso dar aos pedais.
E eu vi logo que era para mim! O meu pai ainda estava a fechar a carrinha e eu já estava a andar nela, aquilo era só acelerar. Mas a primeira vez que andei de moto, mesmo, deve ter sido aí aos seis anos, no Sul de Espanha. Estávamos de férias e encontrámos uma pista com umas motos pequenas, e o meu pai disse-me para experimentar. Eu estava com um bocado de medo, mas lá fui andar na moto. Ao início estranhei, mas em pouco tempo já não queria deixar a moto. Mas andar mesmo a sério foi a partir dos 12. Na altura só podíamos tirar a licença aos 16, mas então era mais fácil escapar com estas coisas. Quando vivi fora de Portugal não tive moto. Só andava de moto quando vinha passar férias ao Porto.
AdM - Ao longo da tua vida, enquanto foste crescendo, sempre tiveste as motos à tua volta. Mas antes desta parte mais mediática da tua vida, em que seguimos as tuas aventuras em cima de uma moto, tinhas uma outra vida. O que é que fazias?
Eunice - Eu trabalhava numa multinacional. Gostava daquilo que fazia, mas estava num ritmo muito acelerado. Estive em multitasking durante uns dois anos. E, com todo o stress, o meu organismo chegou a uma altura em que não aguentou mais. Comecei a sentir-me muito cansada, com muitas dores. No início associámos isto ao trabalho, até que cheguei a um ponto em que já não aguentei mais.
O estúdio onde eu vivia era pequeno. Mas mesmo assim para eu me levantar do sofá para ir à cozinha eu ficava sem energia, sem forças. Fiquei num estado em que o meu corpo não produzia energia. Ao fim de nove meses disseram-me que eu tinha o síndrome da fadiga crónica, e fibromialgia. A partir daí tive de mudar de vida, e ao mudar de vida voltei para casa, para perto desta velha paixão, e aos poucos, enquanto fui melhorando, fui tendo necessidade de me pôr à prova. Porque eu abdiquei da minha carreira, da minha independência, tinha um estúdio pequenino, mas era a minha casa. Agora vivo com o meu pai e a minha mãe.
AdM - Então aquilo que fazes agora, as tuas viagens de moto, servem para tu te colocares à prova, para mostrares que ainda és capaz?
Eunice - Sim, foi esse o despertar. E foi também o facto de eu ter quase quarenta anos e perceber que as viagens que eu tinha, desde miúda, imaginado fazer de moto, ainda não as tinha feito. A moto estava ali muito esquecida. E esses planos, as viagens que eu tinha sonhado fazer, nunca tinham acontecido. Então eu acho que aconteceu tudo no timing certo, na altura certa. Eu andava já a pensar, ou melhor, a repensar a minha vida. Entretanto vim à FIL, a Lisboa, e foi quando apresentaram a Himalyan. Foi aí que a vi pela primeira vez, e pensei logo: é com esta que vou dar a minha volta a Portugal!
AdM - Foi aí, nesse momento que tudo começou.
Eunice - Sim, eu estava ao lado dos representantes da Royal Enfield para a Península Ibérica e disse-lhes “Acabei de ter uma ideia!”, e eles “Então diz lá”.
AdM - Mas disseste que tinhas viagens de moto que tinhas sonhado fazer quando eras mais nova. Esses planos estão postos de parte devido à tua doença?
Eunice - Não! Nada disso. Quer dizer, de certa forma a doença põe os planos em causa. Por exemplo eu fiz a volta a Portugal em 33 dias. Bem devagarinho. Tudo bem que andei sempre por estradas secundárias, e tenho muitas histórias disso.
AdM - Precisaste de ajuda de muita gente nessa viagem?
Eunice - Precisei. Uma das melhores histórias foi quando eu tive de parar um carro na estrada nacional e tive de pedir para me irem ajudar a tirar a moto das dunas porque eu não o conseguia fazer sozinha. Tenho imensas histórias porque a Himalayan puxava a isso. Mas foi uma viagem que fui fazendo devagar. Eu defino o trajeto mais ou menos no dia anterior, porque vai depender muito de como é que o meu corpo está a produzir energia. Felizmente correu muito bem, e houve só um dia em que estive pior, na Serra da Estrela.
AdM - Então a doença acaba por te obrigar a uma planificação diferente?
Eunice - Claro. Eu comecei por Portugal porque, em último recurso, podia sempre parar a moto e ficar onde tivesse de ficar sem problemas. Eu tenho é de ter um cuidado acrescido e se sentir que estou a tremer tenho logo de parar. Há pequenas coisas que eu tenho de controlar.
Eu não faço muitos quilómetros por dia. Ou melhor, se eu tiver de os fazer eu faço, mas pode ser um risco, e depois no dia a seguir posso já não me conseguir mexer. Por isso tento fazer entre 100 e 200 km. E isso ocupa-me o dia todo porque depois eu paro, tiro fotografias. Eu levo mapa, porque quero que seja uma coisa que fosse mesmo como eu imaginei quando era mais nova. Não sou adepta dos GPS, gosto da parte física, de sublinhar o mapa, tirar notas, até porque são registos que ficam para o futuro.
AdM - Há muito por descobrir em Portugal?
Eunice - Sim! Muito mesmo. Por exemplo aquela zona de Miranda do Douro, Trás-os-Montes, está muito deserto. E chego ali e é tudo tão bom, e quando vais de moto sentes os cheiros. É muito bom, muita emoção junta, e vou aproveitando o que vai aparecendo pelo caminho.
AdM - E como é que tem sido a tua relação com a Himalayan?
Eunice - Tem sido ótima. Aliás, a moto com que eu fiz a Volta a Portugal era da marca. Mas a minha relação com ela era tão boa que já não a deixei ir embora. Ela ficou a ser a minha companheira, e depois falei com a marca, e como eles iam vender algumas motos de serviço não fazia sentido eu comprar uma moto nova.
AdM - E porquê uma viagem agora à Península Ibérica? É uma forma de ires testando os teus limites? Qualquer dia estás em França...
Eunice - E porque não? Na realidade como eu nunca sei bem o que é que o meu corpo vai aguentar, achei por bem não dar nunca um passo maior do que a perna, como se costuma dizer. Por exemplo dar uma volta à Europa, passar por países onde a Royal Enfield tem uma presença mais forte, eu já sentia que neste momento era demais para mim.
AdM - Agora és mais feliz do que eras antes de abraçar mais fortemente este mundo das motos?
Eunice - Sim, sou. Quer dizer, nem tudo é bom. Eu perdi a minha independência. Não é que os meus pais me chateiem a perguntar para onde vou, ou com quem vou. É mais no sentido que estou a ter de começar do zero outra vez, com algumas limitações. O começar do zero não é problema, o que é problema são as limitações pois tenho de ser paciente.
AdM - Mas és mais feliz agora?
Eunice - Ah, sim sou, claro. Porque as motos e viajar tem-me ajudado muito. Porque isto é como uma paixão! E nós, quando estamos apaixonados, tudo é mais fácil, andamos mais felizes com a vida...
AdM - Não me vais dizer que sentes borboletas na barriga?
Eunice - (Risos) Também! Isto ajuda-me. Dá motivação.

AdM - Funciona então como uma terapia o viajar de moto?
Eunice - Sim, como uma terapia. É também uma meditação porque nos obriga a estar concentrados, é uma boa forma de pormos as ideias no lugar. É engraçado pois acho que me reencontrei. Eu até nem tinha uma vida má, e eu gostava do que fazia, e até me estavam a dar espaço para eu crescer. Tinha acabado de ser promovida, mas eu já não consegui aproveitar.
E depois vivia em Madrid, uma cidade com tudo, onde fiz muitos e bons amigos, que me deram um apoio incrível nessa fase. Portanto eu não olho para trás como “ah, eu era tão infeliz!”, porque não era, tinha uma independência económica que me permitia viajar, investir nos livros, na música, coisas que gosto muito. Mas de facto isto (viajar de moto) era uma coisa que me fazia falta. E eu não estava consciente disso. Portanto nesse sentido sim, sou mais feliz.
AdM - Então e depois de tantos quilómetros de felicidade com a Himalayan estás agora a “trair” a tua paixão!
Eunice - Eu não a vou trocar, ela está lá à minha espera! Mas nesta viagem achei que fazia sentido fazer a troca pela Interceptor 650. É como eu dizia há bocado: isto é muito bonito, mas se a marca (e o pai) não me apoiasse, mesmo em termos de logística e tudo, eu não conseguia fazer estas viagens. Por exemplo atravessar a Andaluzia com este tempo, na Himalayan, poderia não ser tão agradável. Acho que a Interceptor funciona melhor nesta viagem, até porque há estradas nacionais fantásticas. E também porque, confesso, estou maravilhada com a Interceptor!
AdM - No fim ainda vais juntar a Interceptor à Himalayan lá na garagem...
Eunice - Não! Não posso. Ando maravilhada com ela, é super doce, suave, maravilhosa. O que é bom porque não me cansa. Mesmo a posição de condução é só um bocadinho mais dobrada, mas é confortável e ela anda muito bem.
AdM - E durante o percurso, que é um pouco definido ao sabor do vento, vais totalmente sozinha sem ajuda de ninguém?
Eunice - Eu nunca estou totalmente sozinha. Ou melhor, eu nunca me sinto sozinha. Porque a disponibilidade que tenho para as pessoas que se cruzam comigo, e vice-versa, é sempre muito grande. Por isso é muito fácil a interligação. Por exemplo aconteceu-me na volta a Portugal, e acho que vai acontecer agora também, que as pessoas querem muito cuidar de mim, não sei se por estar sozinha, se por ser uma fala-barato...
Mas as pessoas oferecem-me logo comida. O que eu acho que é a forma mais rápida de alguém dar amor. E portanto nunca me sinto sozinha. E eu acho que em Espanha eles também são muito simpáticos e falam logo. Até porque nesta viagem eu estou a receber muitos convites e solicitações para ir a sítios e fazer coisas, por isso acho que nesta viagem eu não vou mesmo andar sozinha.
AdM - Nesse sentido As redes sociais vieram ajudar muito?
Eunice - Sim, sem dúvida. Confesso que antigamente eu nem ligava muito. Quer dizer, eu tinha um Facebook porque tive de criar um perfil quando fiz Erasmus e precisava de me manter ligada a pessoas de todos os cantos do mundo. Quando decidi fazer a volta a Portugal tive de criar as outras redes, e foi também uma surpresa para mim porque eu não sabia o que esperar.
E foi bom, o feedback foi sempre positivo, nunca recebi nada que fosse menos agradável. Achei fantástico as pessoas perderem um pouco do seu tempo para me mandarem uma mensagem a desejar boa viagem, e dar dicas de coisas para fazer. E agora isto cresceu para o triplo, e estou com dificuldades para gerir tudo. Tento responder a todos, porque é o mínimo que devo fazer às pessoas que têm este carinho por mim.
AdM - Mas nem tudo serão boas experiências. Nestas viagens qual foi a pior experiência que passaste?
Eunice - Houve um dia mais complicado em que cometi um erro e fiquei com uma queimadura na perna. Foi a única coisa mais chata.
AdM - Nunca tiveste aqueles momentos em que pensaste “o que é que estou aqui a fazer?”, e desejaste voltar para casa?
Eunice - Isso não. Fisicamente houve momentos muito complicados, como quando apanhei muito calor.
AdM - E como é que fazes quando deixas cair a moto para o lado?
Eunice - Pois... tenho de pedir ajuda. E o pior é que normalmente eu deixo cair a moto nos caminhos de cabras, depois tinha de ir até a uma aldeia, encontrar uma pessoa jovem, e pedir para me ir ajudar a levantar a moto lá no meio do monte.
AdM - Não tens planos definidos. Mas a ideia é tu fazeres quantos dias de viagem na Península Ibérica? E quantos quilómetros?
Eunice - Eu não fiz contas aos quilómetros. A viagem dividi-a em duas fases. Para já vou pelo sul, até Valência, subo por Cuenca até Madrid. Em agosto não quero estar na estrada. Muito trânsito, as pessoas não olham para os espelhos. Em agosto quero parar. Depois volto à estrada em setembro, e a partida será de Barcelona, em princípio com um grupo de “Royaleiros” da Catalunha que já me escreveram.
Depois faço o norte, com passagem obrigatória pelos Picos da Europa, Bilbao, Astúrias, Galiza, e para terminar outra vez no Porto. Penso que esta segunda metade da viagem serão outras três semanas ou um mês.


https://www.andardemoto.pt/moto-news/44553-entrevista-eunice-rides-a-royal-desafiar-se-para-viver-em-duas-rodas/

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